A Educação Criando Cidadãos
Carlos Drummond de Andrade
30-10-2010 07:40Carlos Drummond de Andrade
Poeta, contista e cronista mineiro (1902-1987) . Considerado um dos maiores poetas da língua portuguesa e da literatura latino-americana. Nasce e passa a infância numa fazenda em Itabira. Estuda em Belo Horizonte e em Nova Friburgo (RJ). Forma-se em Farmácia (1925) em Ouro Preto, mas não exerce a profissão. Volta a Belo Horizonte, onde freqüenta as rodas de escritores. Integra o grupo que funda A Revista, publicação literária de tendência nacionalista que se torna o veículo mais importante do modernismo mineiro. Em 1926, entra para o jornalismo no Diário de Minas. Lança o primeiro livro, Alguma Poesia, em 1930 e, quatro anos depois, assume a chefia de gabinete do Ministério da Educação no Rio de Janeiro. Permanece no serviço público até a aposentadoria. Ligado ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) no início dos anos 40, escreve poesias de fundo social, como Sentimento do Mundo (1940) e A Rosa do Povo (1945). Mas a indignação pelas desigualdades sociais não lhe tira o profundo lirismo, o senso de humor e a emoção contida. A partir de Claro Enigma (1951), volta a registrar o vazio da vida humana e o absurdo do mundo. Em 1954 passa a escrever crônicas no Correio da Manhã e, em 1969, no Jornal do Brasil. Entre suas obras estão Lição de Coisas (1962), Os Dias Lindos (crônicas, 1978) e Boca de Luar (crônicas, 1984). (Dados extraídos do Almanaque Abril Cultural 1997)
"Entre as diversas formas de mendicância , a mais humilhante é a do amor implorado." (Carlos Drummond de Andrade)
"Existem muitos motivos para não se amar uma pessoa, mas apenas um para amá-la." (Carlos Drummond de Andrade)
"Tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo"
"Se procurar bem, você acaba encontrando não a explicação (duvidosa) da vida, mas a poesia (inexplicável) da vida." Carlos Drummond de Andrade
"O problema não é inventar. É ser inventado hora após hora e nunca ficar pronta nossa edição convincente." Carlos Drummond de Andrade
"Eu nunca tive pretensões a nada na vida, nunca pretendi ser rico ou poderoso e nem mesmo feliz. Na medida do possível, acho que vivi uma vida tranqüila. Posso ter errado muitas vezes, mas valeu a pena. Foi bom."
Carlos Drummond de Andrade, aos 80 anos.
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Amar
Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer, amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?
Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?
Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o áspero,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho,
e uma ave de rapina.
Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor à procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.
Amar a nossa falta mesma de amor,
e na secura nossa, amar a água implícita,
e o beijo tácito, e a sede infinita.
(Carlos Drummond de Andrade)
Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?)
Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumidas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.
Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.
A noite desceu. Que noite!
Já não enxergo meus irmãos.
E nem tampouco os rumores
Que outrora me perturbavam
A noite desceu. Nas casas,
Nas ruas onde se combate,
Nos campos desfalecidos,
A noite espalhou o medo
E a total incompreensão.
A noite caiu. Tremenda,
Sem esperança... Os suspiros
Acusam a presença negra
Que paralisa os guerreiros.
E o amor não abre caminho
Na noite. A noite é mortal,
Completa, sem reticências,
A noite dissolve os homens,
Diz que á inútil sofrer,
A noite dissolve as pátrias,
Apagou os almirantes
Cintilantes nas ruas fardas.
A noite anoiteceu tudo...
O mundo não tem remédio...
Os suicidas tinham razão.
O último dia do ano
Não é o último dia do tempo.
Outros dias virão
E novas coxas e ventres te comunicarão o calor da vida.
Beijarás bocas, rasgarás papéis,
Farás viagens e tantas celebrações
De aniversário, formatura, promoção, glória, doce morte com sinfonia
E coral,
Que o tempo ficará repleto e não ouvirás o clamor,
Os irreparáveis uivos
Do lobo, na solidão.
O último dia do tempo
Não é o último dia de tudo.
Fica sempre uma franja de vida
Onde se sentam dois homens.
Um homem e seu contrário,
Uma mulher e seu pé,
Um corpo e sua memória,
Um olho e seu brilho,
Uma voz e seu eco.
E quem sabe até se Deus...
Recebe com simplicidade este presente do acaso.
Mereceste viver mais um ano.
Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos séculos.
Teu pai morreu, teu avô também.
Em ti mesmo muita coisa, já se expirou, outras espreitam a morte,
Mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo,
E de copo na mão
Esperas amanhecer.
O recurso de se embriagar.
O recurso da dança e do grito,
O recurso da bola colorida,
O recurso de Kant e da poesia,
Todos eles... e nenhum resolve.
Surge a manhã de um novo ano.
As coisas estão limpas, ordenadas.
O corpo gasto renova-se em espuma.
Todos os sentidos alerta funcionam.
A boca está comendo vida.
A boca está entupida de vida.
A vida escorre da boca,
Lambuza as mãos, a calçada.
A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia.
Precisamos descobrir o Brasil!
Escondido atrás das florestas,
com a água dos rios no meio,
O Brasil está dormindo, coitado.
Precisamos colonizar o Brasil.
O que faremos importando francesas
muito louras, de pele macia,
alemãs gordas, russas nostálgicas para
garçonettes dos restaurantes noturnos.
E virão sírias fidelíssimas.
Não convém desprezar as japonesas...,
Precisamos educar o Brasil.
Compraremos professores e livros,
assimilaremos finas culturas,
abriremos dancings e subvencionaremos as elites.
Cada brasileiro terá sua casa
com fogão e aquecedor elétricos, piscina,
salão para conferências científicas.
E cuidaremos do Estado Técnico.
Precisamos louvar o Brasil.
Não é só um país sem igual.
Nossas revoluções são bem maiores
do que quaisquer outras; nossos erros também.
E nossas virtudes? A terra das sublimes paixões...
os Amazonas inenarráveis... os incríveis Jõao-Pessoas...
Precisamos adorar o Brasil!
Se bem que seja difícil caber tanto oceano e tanta solidão
no pobre coração já cheio de compromissos...
se bem que seja difícil compreender o que querem esses homens,
por que motivo eles se ajuntaram e qual a razão de seus sofrimentos.
Precisamos, precisamos esquecer o Brasil!
Tão majestoso, tão sem limites, tão despropositado,
ele quer repousar de nossos terríveis carinhos.
O Brasil não nos quer! Está farto de nós!
Nosso Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil.
Nenhum BRasil existe. E acaso existirão os brasileiros?
1934, Brejo das almas (Poemas). Belo Horizonte, Os Amigos do Livro
porque amou por que amou
se sabia
p r o i b i d o p a s s e a r s e n t i m e n t o s
ternos ou desesperados
nesse museu do pardo indiferente
me diga: mas por que
amar sofrer talvez como se morre
de varíola voluntária vágula evidente?
ah PORQUE AMOU
e se queimou
todo por dentro por fora nos cantos ecos
lúgubres de você mesm(o,a)
irm(ã,o) retrato espetáculo por que amou?
se era para
ou era por
como se entretanto todavia
toda via mas toda vida
é indignação do achado e aguda espotejação
da carne do conhecimento, ora veja
permita cavalheir(o,a)
amig(o,a) me releve
este malestar
cantarino escarninho piedoso
este querer consolar sem muita convicção
o que é inconsolável de ofício
a morte é esconsolável consolatrix consoadíssima
a vida também
tudo também
mas o amor car(o,a) colega este não consola nunca de nuncarás.
Infância
Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.
Minha mãe ficava sentada cosendo.
Meu irmão pequeno dormia
Eu sozinho, menino entre mangueiras
lia história de Robinson Crusoé,
comprida história que não acaba mais.
No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu
a ninar nos longes da senzala - e nunca se esqueceu
chamava para o café.
café preto que nem a preta velha
café gostoso
café bom
Minha mãe ficava sentada cosendo
olhando para mim:
- Psiu... não corde o menino.
Para o berço onde pousou um mosquito
E dava um suspiro... que fundo !
Lá longe meu pai campeava
no mato sem fim da fazenda.
E eu não sabia que minha história
era mais bonita que a de Robinson Crusoé.
No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.
Eu preparo uma canção
em que minha mãe se reconheça,
todas as mães se reconheçam,
e que fale como dois olhos.
Caminho por uma rua
que passa em muitos países.
Se não me vêem, eu vejo
e saúdo velhos amigos.
Eu distribuo um segredo
como quem ama ou sorri.
No jeito mais natural
dois carinhos se procuram.
Minha vida, nossas vidas
formam um só diamante.
Aprendi novas palavras
e tornei outras mais belas.
Eu preparo uma canção
que faça acordar os homens
e adormecer as crianças.
Além da Terra, além do Céu,
no trampolim do sem-fim das estrelas,
no rastro dos astros,
na magnólia das nebulosas.
Além, muito além do sistema solar,
até onde alcançam o pensamento e o coração,
vamos!
vamos conjugar
o verbo fundamental essencial,
o verbo transcendente, acima das gramáticas
e do medo e da moeda e da política,
o verbo sempreamar,
o verbo pluriamar,
razão de ser e de viver.
Há muito tempo, sim, não te escrevo.
Ficaram velhas todas as notícias.
Eu mesmo envelheci. Olha, em relevo,
estes sinais em mim, não das carícias
( tão leves ) que fazias no meu rosto:
são golpes, são espinhos, são lembranças
da vida a teu caminho, que ao sol-posto
perde a sabedoria das crianças.
A falta que me fazes não é tanto
à hora de dormir, quando dizias:
Deus te abençoe", e a noite abria em sonho.
É quando, ao despertar, revejo a um canto
a noite acumulada de meus dias,
e sinto que estou vivo, e que não sonho.
Toada do Amor
E o amor sempre nessa toada!
briga perdoa perdoa briga.
Não se deve xingar a vida,
a gente vive, depois esquece.
Só o amor volta para brigar,
para perdoar,
amor cachorro bandido trem.
Mas, se não fosse ele, também
que graça que a vida tinha?
Mariquita, dá cá o pito,
no teu pito está o infinito.
Certas palavras não podem ser ditas
em qualquer lugar e hora qualquer.
Estritamente reservadas
para companheiros de confiança,
devem ser sacralmente pronunciadas
em tom muito especial
lá onde a polícia dos adultos
não adivinha nem alcança.
Entretanto são palavras simples:
definem
partes do corpo, movimentos, atos
do viver que só os grandes se permitem
e a nós é defendido por sentença
dos séculos
E tudo proibido. Então, falamos.
Soneto da Perdida Esperança
Perdi o bonde e a esperança.
Volto pálido para a casa.
A rua é inútil e nenhum auto
passaria sobre meu corpo.
Vou subir a ladeira lenta
em que os caminhos se fundem.
Todos eles conduzem ao
princípio do drama e da flora.
Não sei se estou sofrendo
ou se é alguém que se diverte
por que não? na noite escassa
com um insolúvel flautim
Entretanto há muito tempo
nós gritamos: sim! ao eterno.
PARA SEMPRE
Por que Deus permite
que as mães vão se embora?
Mãe não tem limite,
é tempo sem hora,
luz que não se apaga
quando sopra o vento
e chuva desaba,
veludo escondido
na pele enrugada,
água pura, ar puro,
puro pensamento.
Morrer acontece
com o que é breve e passa
sem deixar vestígio.
Mãe, na sua graça,
é eternidade.
Por que Deus se lembra
- mistério profundo -
de tirá-la um dia?
Fosse eu Rei do Mundo,
baixava uma lei:
Mãe não morre nunca,
mãe ficará sempre
junto de seu filho
e ele, velho embora,
será pequenino
feito grão de milho.
Esta é a orelha do livro
por onde o poeta escuta
se delem falam mal
ou se o amam.
Uma orelha ou uma boca
sequiosa de palavras?
São oito livros velhos
e mais um livro novo
de um poeta ainda mais velho
que a vida viveu
e contudo provoca
a viver sempre e nunca.
Oito livros que o tempo
empurrou para longe
de mim
mais um livro sem tempo
em que o poeta se contempla
e se diz boa-tarde
(ensaio de bom-noite,
variante de bom-dia,
que tudo é o vasto dia
em seus compartimentos
nem sempre respiráveis
e todos habitados
enfim.)
Não me leias se buscas
flamante novidade
ou sopro de Camões.
Aquilo que revelo
e o mais que segue oculto
em vítreos alçapões
são notícias humanas,
simples estar-no-mundo,
e brincos de palavra,
um não-estar-estando,
mas que tal jeito urdidos
o jogo e a confissão
que nem ditongo eu mesmo
o vivido e o inventado.
Tudo vivido? Nada.
Nada vivido? Tudo.
A orelha pouco explica
de cuidados terrenos;
e a poesia mais rica
é um sinal de menos.
ENLEIO
Que é que vou dizer a você ?
Não estudei ainda o código
De amor.
Inventar, não posso.
Falar, não sei.
Balbuciar, não ouso.
Fico de olhos baixos
Espiando, no chão, a formiga.
Você sentada na cadeira de palhinha.
Se ao menos você ficasse aí nessa posição
Perfeitamente imóvel, como está,
Uns quinze anos ( só isso )
Então eu diria:
Eu te amo
Por enquanto sou apenas o menino
Diante da mulher que não percebe nada.
Será que você não entende, será que você é burra ?
QUERO*
Quero que todos os dias do ano
Todos os dias da vida
De meia em meia hora
De 5 em 5 minutos
Me digas: Eu te amo.
Ouvindo-te dizer: Eu te amo,
Creio, no momento, que sou amado.
No momento anterior
E no seguinte,
Como sabê-lo?
Quero que me repitas até a exaustão
Que me amas que me amas que me amas.
Do contrário evapora-se a amação
Pois ao dizer: Eu te amo,
Desmentes
Apagas
Teu amor por mim.
Exijo de ti o perene comunicado.
Não exijo senão isto,
Isto sempre, isto cada vez mais.
Quero ser amado por e em tua palavra
Nem sei de outra maneira a não ser esta
De reconhecer o Dom amoroso,
A perfeita maneira de saber-se amado:
Amor na raiz da palavra
E na emissão,
Amor
Saltando da língua nacional,
Amor
Feito som
Vibração espacial.
No momento em que não me dizes:
Eu te amo,
Inexoravelmentesei
Que dexaste de amar-me,
Que nunca me amaste antes.
Se não disseres urgente repetido
Eu te amoamoamoamoamoamo,
Verdade fulminante que acabas de dentranhar,
Eu me precipito no caos,
Essa coleção de objetos de não-amor.
MEMÓRIA
Amar o perdido
deixa confundido
este coração.
Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.
As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão.
Mas as coisas findas,
muito mais que lindas,
essas ficarão.
AS SEM-RAZÕES DO AMOR
Eu te amo porque te amo.
Não precisas ser amante,
e nem sempre sabe sê-lo.
Eu te amo porque te amo.
Amor é estado de graça
e com amor não se paga.
Amor é dado de graça,
é semeado no vento,
na cachoeira, no eclipse.
Amor foge a dicionários
e a regulamentos vários.
Eu te amo porque te amo
bastante ou demais a mim.
Porque amor não se troca,
não se conjuga nem se ama.
Porque amor é amor a nada,
feliz e forte em si mesmo.
Amor é primo da morte,
e da morte vencedor,
por mais que o matem (e matam)
a cada instante de amor.
O MUNDO É GRANDE
O mundo é grande e cabe
nesta janela sobre o mar.
O mar é grande e cabe
na cama e no colchão de amar.
O amor é grande e cabe
no breve espaço de beijar.
APARIÇÃO AMOROSA
Doce fantasma, por que me visitas
como em outros tempos nossos corpos se visitavam?
Tua transparência roça-me a pele, convida
a refazermos carícias impraticáveis: ninguém nunca
um beijo recebeu de rosto consumido.
Mas insistes, doçura. Ouço-te a voz,
mesma voz, mesmo timbre,
mesmas leves sílabas,
e aquele mesmo longo arquejo
em que te esvaías de prazer,
e nosso final descanso de camurça.
Então, convicto,
ouço teu nome, única parte de ti que não se dissolve
e continua existindo, puro som.
Aperto... o quê? a massa de ar em que te converteste
e beijo, beijo intensamente o nada.
Amado ser destruído, por que voltas
e és tão real assim tão ilusório?
Já nem distingo mais se és sombra
ou sombra sempre foste, e nossa história
invenção de livro soletrado
sob pestanas sonolentas.
Terei um dia conhecido
teu vero corpo como hoje o sei
de enlaçar o vapor como se enlaça
uma idéia platônica no espaço?
O desejo perdura em ti que já não és,
querida ausente, a perseguir-me, suave?
Nunca pensei que os mortos
o mesmo ardor tivessem de outros dias
e no-lo transmitissem com chupadas
de fogo aceso e gelo matizados.
Tua visita ardente me consola.
Tua visita ardente me desola.
Tua visita, apenas uma esmola.
A LOJA FEMININA
Cinco estátuas recamadas de verde
na loja, pela manhã, aguardam o acontecimento.
é próprio de estátuas aguardar sem prazo e cansaço
que os fados se cumpram ou deixem de cumprir-se.
Nenhuma ruga no imobilismo
de figurinos talhados para o eterno
que é, afinal, novelo de circunstâncias.
Iguais as cinco, em postura vertical,
um pé à frente do outro, quase suspenso
na hipótese de vôo, que não se consumará,
em direção da porta sonora
a ser aberta para alguém desconhecido
- Vênus certamente, face múltipla -
assomar em tom de pesquisa,
apontando o estofo, o brinco, o imponderável
que as estátuas ocultam em sigilo de espelhos.
Passaram a noite em vigília,
nasceram ali, habitantes de aquário,
programadas em uniformes verde-musgo
para o serviço de bagatelas imprescindíveis.
Sabem que Vênus cedo ou tarde,
provavelmente tarde e sem pintura,
chegará.
Chega, e o simples vulto
aciona as esculturas.
Ao cintilar de vitrinas e escaninhos,
Ao cintilar de vitrinas e escaninhos,
objetos deixam de ser inanimados.
Antes de chegar à pele rósea,
a pulseira cinge no ar o braço imaginário.
O enfeite ocioso ganha majestade
própria de divinos atributos.
Tudo que a nudez torna mais bela
acende faíscas no desejo.
As estátuas sabem disto e propiciam
a cada centímetro de carne
uma satisfação de luxo erótico.
O ritmo dos passos e das curvas
das cinco estátuas vendedoras
gera no salão aveludado
a sensação de arte natural
que o corpo sabe impor à contingência.
Já não se tem certeza se é comercio
ou desfile de ninfas na campina
que o spot vai matizando em signos verdes
como tapeçaria desdobrante
do verde coletivo das estátuas.
Hora de almoço.
Dissolve-se o balé sem música no recinto.
Não há mais compradoras. Hora de sol
batendo nos desenhos caprichosos
de manso aquário já marmorizado.
As estátuas regressam à postura
imóvel de cegonhas ou de guardas.
São talvez manequins, de moças que eram.
O viço humano perde-se no artifício
de coisas integrantes de uma loja.
Se estão vivas, não sei. Se acaso dormem
o dormir egípcio de séculos,
se morreram (quem sabe), se jamais
existiram, pulsaram, se moveram,
não consigo saber, pois também eu
invisível na loja me dissolvo
nesse enigma de formas permutantes.
JOSÉ
E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?
Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
E agora, José?
sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio — e agora?
Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?
Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse...
Mas você não morre,
você é duro, José!
Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, para onde?
(Poema extraído do livro "JOSÉ", Carlos Drummond de Andrade, editora Record)
|
O SEU SANTO NOME
Não facilite com a palavra amor.
Não a jogue no espaço, bolha de sabão.
Não se inebrie com o seu engalanado som.
Não a empregue sem razão acima de toda razão (e é raro).
Não brinque, não experimente, não cometa a loucura sem remissão de espalhar aos quatro ventos do mundo essa palavra que é toda sigilo e nudez, perfeição e exílio na Terra.
Não a pronuncie.
(Poema extraído do livro "CORPO", Carlos Drummond de Andrade, editora Record)
Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.
As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.
O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.
O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.
(...)
Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.
Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.
Carlos Drummond de Andrade
ACORDAR VIVER
Como acordar sem sofrimento?
Recomeçar sem horror?
O sono transportou-me
àquele reino onde não existe vida
e eu quedo inerte sem paixão.
Como repetir, dia seguinte após dia seguinte,
a fábula inconclusa,
suportar a semelhança das coisas ásperas
de amanhã com as coisas ásperas de hoje?
Como proteger-me das feridas
que rasga em mim o acontecimento,
qualquer acontecimento
que lembra a Terra e sua púrpura
demente?
E mais aquela ferida que me inflijo
a cada hora, algoz
do inocente que não sou?
Ninguém responde, a vida é pétrea.
A CASA DO TEMPO PERDIDO
Bati no portão do tempo perdido, ninguém atendeu.
Bati segunda vez e mais outra e mais outra.
Resposta nenhuma.
A casa do tempo perdido está coberta de hera
pela metade; a outra metade são cinzas.
Casa onde não mora ninguém, e eu batendo e chamando
pela dor de chamar e não ser escutado.
Simplesmente bater. O eco devolve
minha ânsia de entreabrir esses paços gelados.
A noite e o dia se confundem no esperar,
no bater e bater.
O tempo perdido certamente não existe.
É o casarão vazio e condenado.
A GRANDE DOR DAS COUSAS QUE PASSARAM
A grande dor das cousas que passaram
transmutou-se em finíssimo prazer
quando, entre fotos mil que se esgarçavam,
tive a fortuna e graça de te ver.
Os beijos e amavios que se amavam,
descuidados de teu e meu querer,
outra vez reflorindo, esvoaçaram
em orvalhada luz de amanhecer.
Ó bendito passado que era atroz,
e gozoso hoje terno se apresenta
e faz vibrar de novo minha voz
para exaltar o redivivo amor
que de memória-imagem se alimenta
e em doçura converte o próprio horror!
Carlos Drummond de Andrade
UNIDADE
As plantas sofrem como nós sofremos.
Por que não sofreriam
se esta é a chave da unidade do mundo?
A flor sofre, tocada
por mão inconsciente.
Há uma queixa abafada
em sua docilidade.
A pedra é sofrimento
paralítico, eterno.
Não temos nós, animais,
sequer o privilégio de sofrer.
Carlos Drummond de Andrade
A ILUSÃO DO MIGRANTE
Quando vim da minha terra,
se é que vim da minha terra
(não estou morto por lá?),
a correnteza do rio
me sussurrou vagamente
que eu havia de quedar
lá donde me despedia.
Os morros, empalidecidos
no entrecerrar-se da tarde,
pareciam me dizer
que não se pode voltar,
porque tudo é conseqüência
de um certo nascer ali.
Quando vim, se é que vim
de algum para outro lugar,
o mundo girava, alheio
à minha baça pessoa,
e no seu giro entrevi
que não se vai nem se volta
A CARNE ENVILECIDA
A carne encanecida chama o Diabo
e pede-lhe consolo. O Diabo atende
sob as mil formas de êxtase transido.
Volta a carne a sorrir, no vão intento
de sentir outra vez o que era graça
de amar em flor e em fluida beatitude.
Mas os dons infernais são novo agravo
à envilecida carne sem defesa,
e nada se resolve, e o aroma espalha-se
de flores calcinadas de horror.
A PORTA da verdade estava aberta
mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.
Assim não era possível atingir toda a verdade
porque a meia pessoa que entrava
só conseguia o perfil de meia verdade.
E sua segunda metade
voltava igualmente com meio perfil.
E os meios perfis não coincidiam.
Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
Chegaram ao lugar luminoso
onde a verdade esplendia os seus fogos.
Era dividida em duas metades
diferentes uma da outra.
Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
E era preciso optar. Cada um optou
confere seu capricho, sua ilusão, sua miopia.
Carlos Drummond de Andrade
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